A arte irreverente de Julian Schnabel
Revelando, no gesto, o processo criativo do artista, Schnabel refaz o elo perdido entre o moderno e contemporâneo
"A arte em nossos tempos oscila entre a convicção de se enfrentar a resistência de uma tradição de habilidade é indispensável aos atos criativos e a crença de que os segredos podem ser pecados vivos no mar de fenômenos. Harold Rosenberg. "Desestetização", In "A Nova Arte", de Gregory Battcock.
Julian Schnabel é hoje um dos fenômenos da arte americana, visto por alguns críticos como "campeão do ressurgimento do modernismo'' (Thomas McEvilley - Catálogo da Retrospectiva de J. Schnabel no Centro Georges Pompidou, 1987), por outros como representante nato do pós-moderno. O fato é que todos o aclamam como uma das maiores revelações da década de 80. Considerando tanto modernismo como o pós-modernismo noções ainda muito abstratas para nós, apelei para a tradição da pintura americana: ela será o pano de fundo sobre Schruibel, marcando os passos deste artigo.
Para melhor analisar este "herói" recorro, de início, às suas definições do que seria sua arte; nas "Notas de Percurso", que se encontram no mesmo catálogo já citado (pág. 106), lê-se uma passagem bastante esclarecedora: "Tudo já existiu um dia. Para mim, não há nenhuma realização no ato que consiste em fazer uma descrição gráfica de mim mesmo, de minha personalidade, sobre a tela. A referência às coisas gastas (usadas), às coisas que todos nós identificamos, está em conflito direto com a vontade de se elaborar uma assinatura pessoal, original e específica, aquela que distinguiria a imagem que se está fabricando de todas as outras. A utilização de materiais preexistentes confere ao nosso trabalho um caráter etnográfico. Eu quero dizer que isto situa a realidade estética num lugar e tempo precisos. É uma escolha que supera o estilo do artista. É uma arte anti-heroica. E mesmo se o artista é considerado um herói, e seu engajamento como heroico, as tarefas e atos que ele realiza caem no ordinário. A única profundidade reside no fato que elas já existem" (grifo meu).
O anti-herói
Este tipo de enfrentamento com a 'Objetividade, onde o artista se debate com uma realidade preexistente, é inaugurado com a arte pop e já foi bem analisado entre nós por Ronaldo Brito (“O Moderno e o Contemporâneo", in: "Caderno de Textos Funarte”. Neste caso o Funarte"). Neste caso, 0 artista não é mais identificado com o artista-herói que cria uma objetividade, um novo mundo. Este outro herói, tão anti-herói, vê-se antes confinado a uma “realidade" que lhe é dada de antemão. Ele é obrigado a se exprimir com ela e contra ela, criando um universo artístico ciente de suas limitações. Ele deve admitir a especificidade de sua atividade, que é essencialmente estética. Se o artista luta contra a “realidade" para poder se exprimir, ele precisa se resguardar num mundo seu: “O artista está necessariamente vinculado a um conceito histórico, passado é futuro. E nessa cadeia da vida, creio que todos estes objetos fabricados pelos artistas no curso da história. são a consolação e o confidente do artista, isolado neste espaço tranquilo criado pela incompatibilidade fundamental entre a arte e a vida" (JS, "Notas de Percurso”, pág. 101).
Esta irreverência frente à vida reflete aquilo que Schnabel chama de efeito de estranhamento. Schnabel, à maneira de outros artistas, procura fazer uma arte estranha à realidade, resistente a ela: "Eu quero criar o que Brecht chamou de 'efeito de estranhamento', que não é bonito. Eu quero que minhas pinturas segurem o observador pelo comprimento do braço. Só pelo comprimento do braço é que alguém pode começar a ver o que está na sua frente." (JS, idem, pág. 100). Imbuído de caráter: pedagógico, este efeito de estranhamento nos ensina a ver as coisas. Isto não é, como já disse, típico de Schnabel e permeia toda a arte moderna. Mas o artista anti-heroico, que vive num mundo de massas, controlado pela mídia, não tem mais a pretensão de criar um mundo para o nosso olhar - como nas naturezas mortas de Morandi ou nas colagens de Matisse. Esta impotência ressalta o caráter crítico do anti-herói. Mais do que nunca, a arte contemporânea procura ser resistente à realidade cotidianamente vivida. Procura ser exceção, momento especial de nossas vidas onde saímos ou somos levados a sair do senso comum.
Até aqui não falei nada de específico sobre J. Schnabel. Apenas procurei mostrar como ele se vincula a um movimento que podemos chamar de contemporâneo. Acredito que, de certa forma, Schnabel, ao reinterpretar a pintura feita na década de 50 nos Estados Unidos, cria novas possibilidades para a arte de hoje. Vejamos como isto se integra em sua obra, ao fazer uma interpretação de um quadro dele, "Maria Callas n° 4, 1983". Trata-se de um quadro a óleo de 2,74 x 3,05m. A grande dimensão desta pintura -bastante típica nos seus quadros- é de suma importância: impondo-se a nós desde o início, ela nos remete à pintura americana dos anos 50; a grande dimensão foi uma “conquista" destes pintores. Por certo já se tinha pintado antes quadros de grandes dimensões, mas até então toda pintura ficava confinada ao seu formato. Os quadros abstratos de 50 procuram escapar de uma pintura de cavalete que tornava os quadros objeto de luxo. O enquadramento que antes delimitava a pintura passa a ser interiorizado. Segundo o crítico americano Clement Greenberg, as pinturas de Barnet Newman se tornam "all frame in itself". Newman, com toda a escola de Nova York, recusa uma hierarquia de contrastes. Recusando uma hierarquia, as pinturas destes artistas só podem ser apreendidas em sua totalidade. Vemos isto claramente com Schnabel, quando ele satura a superfície de pratos quebrados. Com os pratos, o detalhe não tem a mínima importância, só a apreensão do todo nos permite uma interpretação do quadro. Não bastasse o exemplo, suas pinturas recentes sobre ce nários de teatro de 4m x 5m (e às vezes até mais) desafiam a pintura de cavalete, tornando-se quase um "no frame at all”. Outro aspecto que me parece importante é a idéia, comum à "action painting”, de que seus trabalhos devem ser vistos como indicadores de um processo artístico de criação, e não como simples resultado fechado em si mesmo, acabado. É uma "action painting”, uma pintura que deve ser captada no próprio ato de sua constituição, no gesto que deixa marcas na superfície.
Mundo preexistente
Há, no entanto, outro aspecto que diferencia-muito Schnabel dos expressionistas abstratos, justamente o seu anti-heroísmo. Enquanto estes pintores trabalhavam sobre uma tela branca, neutra, ele trabalha sobre materiais preexistentes; no caso de “Maria Callas”, o veludo. (Ele também costuma trabalhar sobre couro, pratos que brados, toldos e cenários). O veludo é um material resistente ao gesto, obrigando Schnabel a condicionar sua criação: a materialidade do veludo está presente até na cor -vermelho sanguíneo sobre a qual Schnabel pinta. Já a tela branca é o espaço ideal para que o gesto se efetue; ela não apresenta resistência, dissolvendo-se no gesto criador do artista. “Maria Callas”, ao contrário, exemplifica uma pintura anti-heroica, onde a própria gestualidade se coaduna com o já dado, confundindo-se. Não bastasse a resistência do material, vemos a transformação dos gestos em signos que parecem ser familiares. O fato de ela nunca se realizar completamente, ire- vela a luta - nunca resolvida - do anti-herói com o herói.
A transformação dos gestos em signos familiares é uma das maneiras que Schnabel encontra para se referir a uma objetividade dada anteriormente, que se confunde com o ato criador do artista. Esta "maneira" baseia-se na compreensão de que já em Pollock, De Kooning e Franz Kline, a gestualidade, como se a contragosto, passa a adquirir um certo mimetismo, uma certa mecanicidade. O reverso desta relação com a imagem pode ser encontrado na referência que Schnabel faz ao pop. Ao contrário do gesto, que transcendendo a si mesmo, funda uma objetividade, nos deparamos com imagens que parecem estar no mundo antes de serem pintadas. São imagens comuns captadas no cotidiano; elas são dadas de antemão numa cultura e tempo específicos. Impondo se ao sujeito criador, não · mais lhe pertencem: o gesto fica subsumido ao mundo aparente, saturado de imagens. Este tipo de pintura está ligado a uma “tradição pop" que podemos encontrar desde Philip Guston a David Hockney, Sigmar Polke, David Salle e outros, além do próprio Schnabel.
O que diferencia J. Schnabel desta arte anti-heroica é sua atração pelo heroísmo de 50. Schnabel é um dos poucos artistas contemporâneos que traz consigo um gesto heroico: O próprio traço deixando reminiscências do processo criativo do artista, de uma subjetividade transparente no gesto. Só que está “subjetividade" não alcança mais a plenitude dos artistas modernos. Se ainda persiste um heroísmo em Schnabel, é um heroísmo sem prática sem uma semântica que reflita exclusivamente o artista na sua relação com o mundo. Poderíamos definir este heroísmo como nostálgico, avesso a qualquer possibilidade de se alcançar uma certa plenitude. Ainda assim, Schnabel refaz o elo perdido entre o moderno e o contemporâneo. Seus quadros revelam um processo artístico que jamais se distancia de um fazer, que, encontrando a resistência das coisas preexistentes, se esforça em deixar traços reflexivos. J. Schnabel, apesar do seu anti-heroísmo, assume sua condição de pintor, distanciando-se assim de outros pintores dessa vertente. Brice Marden, que pode ser considerado um dos maiores ex. poentes desta arte, que chamo de anti-heroica, faz tudo. para negar a tradição pictórica: ele retira a figura, o fundo, o gesto. Schnabel faz tudo para recuperar estes elementos, mas sem o heroísmo de 50, sem a vontade de extrapolar o mundo, de romper sua condição anti-heroica.
Conceitualização
Não devemos identificar anti-heroísmo/heroísmo com qualquer juízo de valor, mas comparar atitudes que são distintas no campo da arte. Também não podemos chegar ao absurdo de dizer que a arte contemporânea recusou o fazer, que revela o processo criativo-reflexivo do artista. E que o trabalho entendido como processo artístico passa a ser progressivamente conceitualizado, distanciando-se da obra ele se torna antes condição desta, pressuposto. Ele não é mais responsável pela realização do trabalho, este se tornou exterior a ela: qualquer um pode executá-lo, basta seguir as regras que foram pensadas. Um exemplo da "radicalização" deste processo é a importância dada nas décadas de 60-70 à documentação dos trabalhos -principalmente os "earth works”, atuações feitas diretamente na natureza e que quase sempre só podem ser vistas através de mapas, desenhos e fotografias (ver o artigo “Art and Words" de Rosenberg a este respeito). O processo artístico neste caso está documentado, arquivado. Esta atitude chegou a tal ponto que não se tornou mais necessário executar a obra, bastando enunciá-la.
Julian Schnabel não foi o único a repensar o heroísmo dos anos 50. Cy Twombly, por exemplo, procura desde aquela época cultivar um traço heroico, mas com o cuidado de diluí-lo em atitudes que pudessem neutralizá-lo. O gesto é assim dissolvido na própria ocupação do quadro. Não é à toa que o próprio Schnabel tem grande admiração por este artista: Cy Twombly é um destes heróis expatriados.