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Estruturas Espaciais II (2001)

Algumas ideias sobre a produção recente de Giannotti

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A certa altura da conversa, Marco Giannotti disse "a pintura tem de continuar problematizando a dualidade plano-profundidade. Se ficar apenas na reiteração de seu caráter plano, aí é que corre o risco de morrer mesmo...”. E, enquanto me fazia recordar de artistas como Giorgio Morandi e Alfredo Volpi, caminhávamos pelo seu ateliê, onde Giannotti finalizava as telas para esta que, sem dúvida, é a melhor das exposições que já realizou.

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Morandi, Volpi... artistas que tensionavam o espaço plano da tela por meio da criação de áreas ambíguas: às vezes figuras, às vezes fundo, às vezes plano, dependendo do olho do espectador sobre a tela. E seria nesse sentimento da pintura como palco de realização de sua ambiguidade (essa ambiguidade que pode ser uma de suas condições), justamente nesse lugar é que a produção recente de Marco Giannotti se insere.

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O conceito de pintura como palco (ou seja, como espaço de representação), banido do debate da crítica moderna, nem por isso esteve menos presente na obra de vários artistas até meados do século XX. De Courbet e Manet até Maliêvitch, por exemplo, é possível perceber um arco ascendente de complexidade desse conceito. Se nos dois primeiros a reiteração do caráter plano da pintura surgia, em certos momentos, mesclada a uma representação ligada não ao real aparente, mas, muitas vezes, à representação alegórica da História ou da Filosofia, em Maliêvitch – o Malievitch de Branco sobre branco –, a pintura tornava-se emblema de si mesma, ou de sua ambiguidade primordial: é apresentação e representação, é figura e fundo. E isso poderia ser dito, igualmente, sobre as pinturas dos já citados Morandi e Volpi.

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Essas novas pinturas de Giannotti também se comportam como emblemas dessa ambiguidade. Observando-as, somos levados, desde o início, a pensá-las concomitantemente como apresentações de um espaço plano com áreas de cor e representações de um espaço ilusório onde figura e fundo parecem intercambiáveis.

Penso, por um lado, que essa tensão, essa ambiguidade tão presente na produção do artista, dá-se, em certo sentido, pela extrema horizontalidade das telas que escolheu para realizar seu trabalho. Não permitindo ser abarcada apenas num olhar, a tela compele o espectador a afastar-se e/ou a caminhar à sua frente, momento em que ela, então, de fato, se revela: áreas de cor colocadas lado a lado para preencher o campo pictórico e, ao mesmo tempo, formas discretamente avolumadas que se projetam virtualmente para a superfície, enquanto sua companheira de lado projeta-se para o fundo, até essa situação inverter-se, e inverter-se de novo.

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Essa horizontalidade radicalizada das grandes telas de Giannotti obriga o espectador a um embate direto com ela: a pintura é o palco, o espectador, o performer, o substituto do artista que, ao contemplá-la, reproduz com a pintura o esquema básico da representação: a tela = a linha do horizonte, o mundo; o espectador = a verticalidade do homem... De dispositivo fadado à apresentação-representação do espaço, essas telas então, de repente, parecem espécies de elementos cênicos de uma ação que se dá pela interação entre elas e o espectador.

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Nesse sentido, as pinturas de Giannotti também poderiam ser encaradas como paisagens. Ou melhor, como pano de fundo de um cenário, porque a profundidade que elas transpiram é negada a todo momento, justamente pelo caráter intercambiável entre o que é fundo e o que é figura. Teatrais, elas recusam a autorreferência proposta pela ordem moderna, uma vez que é no embate travado com o olhar e o corpo do espectador que ela se justifica.

Por outro lado, aquele caráter intercambiável das formas, que parecem se alternar entre figura e fundo, traz à lembrança a tradição de certa tendência construtiva, com deságue na arte op. O que não é absolutamente a herança por trás das pinturas de Giannotti... E isso porque suas telas não têm aquele caráter, de certa forma previsível, do jogo óptico construtivo, feito para confundir seduzindo o olhar do espectador. Pelo contrário: a oscilação ambígua daquelas áreas de cor das pinturas de Giannotti seduz justamente porque ficam, por assim dizer, aquém. Permanecem apenas no limiar do jogo escancarado, proposto pela arte.

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É como se uma timidez, ou um caráter discreto demais da pintura do artista, mantivesse o jogo óptico ali estabelecido quase que em eterna suspensão, apenas se iniciando, para depois voltar ao repouso, para de novo se iniciar... Nesse vai-não-vai, nessa encenação, nesse driblar a tradição moderna da pintura, não é que Giannotti faça tábula rasa da herança construtiva da arte brasileira. Ele apenas não se deixa levar pela tentação op que, dissimuladamente, a penetrou.

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Giannotti revisita as vertentes construtivas, não como mais um de seus inúmeros émulos, mas como alguém que vê criticamente aquele lastro importante do passado da arte moderna brasileira, filtrando-o com as lentes da pintura norte-americana do pós-guerra e com as obras de alguns pintores muito especiais para a pintura contemporânea de São Paulo: os já citados Morandi e Volpi... Como resultado, uma pintura potente, porém não voluntariosa. Consciente dos seus limites, porém não de todo satisfeita com eles.

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Tadeu Chiarelli - 2001

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