Letras (1988)
Existem obras que, quando acabadas, escondem o processo que as produziu. Em outras, a forma é dada pelo próprio ato de produzi-las. Neste último caso, o pintor deve suscitar em seus materiais certa relutância em aceitar as suas operações. Deve, então, agir de tal modo que seu gesto seja suficientemente determinado para provocar uma reação, mas frágil o bastante para poder ser contrariado, absorvido e em parte cancelado pela matéria que deveria acolhê-lo.
​
Os trabalhos de Marco Giannotti pertencem a essa segunda categoria. A superfície sobre a qual ele pinta é feita de papel fino, precariamente grampeado à tela. Suas cores são misturas de óleo muito líquido e grafite. Com a superposição das folhas de papel na tela, o plano do quadro se incha em formas retorcidas, seguindo linhas de tensão e de inércia. Tem-se a impressão de que ele quer subjugar os signos que o pintor traçou, anulá-los, atraindo a atenção unicamente para si próprio. A evidência tridimensional contradiz sua função de mero suporte.
​
Por outro lado, a tinta é tão diluída que não recobre o papel, mas o impregna. O pincel corre tão rápido que não tem tempo de fixar-se em desenhos. Entre superfícies e pigmentos não existe acordo nem busca de equilíbrio. Os dois elementos fogem um do outro, procurando constituir-se, cada um deles separadamente, como totalidade, como objeto em si e como função do quadro. O papel acentua a própria concretude, peso e espessura. A tinta retorna ao estado primitivo de líquido oleoso, que mancha.
​
Essa revolta dos materiais, no entanto, não se resolve simplesmente em uma pintura informal. Nos trabalhos expostos existe sempre, evidente, a vontade de produzir signos. É sempre um esboço de escritura, uma tentativa de disposição ordenada que põe em movimento a desordem do quadro – não ocorre anarquia aqui, senão como nostalgia de uma ordem original.
​
Os quadros de Marco Giannotti são povoados de letras alinhadas de modo a quase formarem uma palavra, rascunhos que fazem imaginar uma caligrafia, linhas que mal sugerem o perfil de um desenho. São espaços nos quais está para aflorar uma ordem (um alfabeto, uma imagem, algo provido de sentido), ou ainda nos quais uma ordem, recém-dissolvida, deixou seus últimos vestígios. Gravitam ao redor de um embrião – ou de um resíduo - de linguagem. Giannotti parece querer reportar a escrita a um estado de inocência no qual ela não seja mais um sistema de signos arbitrários, mas uma série de operações ainda embrenhadas na natureza dos materiais e na imitação das formas. Existe, por exemplo, em alguns desses trabalhos, um signo recorrente – uma linha curva descendente que lembra o perfil de uma cabeça. Às vezes é quase invisível, às vezes mais definida; o perfil pode ser mais ou menos acentuado. Essa linha se situa exatamente no ponto em que a forma está para converter-se em signo. No entanto, a metamorfose não se dá por estilização, mas por exasperação do gesto. O papel que cede, o grafite que escorrega impelem o desenho a uma rapidez que faz dele a mera indicação de uma coisa, e não mais a descrição da coisa.
​
Paradoxalmente, essa linha torna-se abstrata por excesso de realismo – o signo não pode ser simplesmente descritivo porque deve aceitar a realidade física do pigmento e do papel. Ou antes, são o papel e o pigmento, quase em luta entre si, que definem o signo como resíduo, refugo desse conflito.
O pintor se insinua onde pode, nos pontos onde a cor penetra mais a fundo no papel, ou nos poucos espaços planos que o encrespar-se da superfície deixou livres. Não é mais senhor do campo; sua escrita, porém, continua obstinadamente a produzir-se.
​
Uma superfície que se dilata, se afrouxa, cede sob seu próprio peso; uma tinta que escorre, deixando apenas a sombra de sua passagem; um conjunto de signos que renuncia a organizar-se em forma. Cada um desses elementos se impõe justamente porque se recusa à sua função usual. O quadro não se define mais como o ponto de encontro desses elementos, mas como área de separação deles, campo neutro de uma diáspora. É nesta área que está para ser abandonada, como num território de fronteira, que Marco constrói pacientemente seu jogo de subtrações. A destruição da harmonia do quadro não se vale de fraturas repentinas ou de contrastes gritantes, ocorre fibra por fibra, sob um manto monocromático. E é tanto mais rigorosa quanto mais esconde, no fundo, uma promessa.
​
Lorenzo Mammi - 1988