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Passagens II (2007)

Passagens

Marco Giannotti é um dos mais coerentes artistas de sua geração. Acompanhar a evolução do seu trabalho – como fiz ao longo dos últimos vinte anos – é observar um contínuo e persistente embate com o poder e os limites da pintura. Uma batalha estrategicamente urdida, em que os instrumentais conceituais e técnicos empregados foram sendo progressivamente incrementados.

A série de pinturas denominada Passagens, agora apresentada pelo artista, é, sob muitos aspectos, a confluência de diversos temas e procedimentos por ele desenvolvidos ao longo do tempo. Temos aqui uma síntese de suas questões essenciais: a força construtiva da cor e o papel da pintura na configuração da espacialidade contemporânea.

Há, na obra de Giannotti, uma operação tectónica cuja materialidade está — ainda que possa parecer paradoxal - assentada na cor. As passagens aqui apresentadas são essencialmente cromáticas. O observador defronta com maciças estruturas coloridas, verdadeiras - formas arquitetônicas, nas quais se abre uma fresta, uma possível passagem.

A cor reveste uma extraordinária fisicalidade, organizando o espaço. É palpável, tem peso. Emerge da tela para se afirmar como volume, povoando o ambiente com estruturas arquitetônicas. Redesenhando o lugar. Mas não se trata de mera geometria formal. Aqui o traço, a linha, não é o princípio construtivo. As sombras que escapam pelas aberturas introduzem uma ambiguidade entre primeiro plano e fundo. Pois o negro, aqui, tal como as outras massas cromáticas, também é cor. Então a passagem entreaberta deixa de ser uma porta e toda a tela assume um aspecto fluido, em que positivo e negativo se equivalem.

Aqui, como em Matisse, a cor vem antes do espaço. O vermelho, diz Merleau-Ponty, não é uma película de ser sem espessura, Ele emerge de uma vermelhidão, menos precisa, na qual o olhar mergulha, antes de fixá-la. Sua forma é semelhante a uma textura lanosa, metálica ou porosa. Esse vermelho só é o que é relacionando-se com outros vermelhos ao redor, com os quais faz uma constelação, ou com outras cores, que atrai ou repele. Ele é um nó na trama do simultâneo e do sucessivo, uma pontuação no campo das coisas vermelhas.

Antes do Renascimento, havia uma multiplicidade de espaços, apropriados pela pintura moderna, que evidencia o processo construtivo. No espaço da perspectiva, a cor perde sua capacidade estruturante, sequestrada pelo desenho. A pintura de Giannotti, assentada numa visão goethiana, resgata a natureza retiniana, física, da cor. Capaz de dissolver a perspectiva, baseada na rígida distinção de claro e escuro. Aqui a cor se assume como luz, no embate com a escuridão. A cor vem de dentro do quadro.

Para Barnett Newman, a pintura é destituída do sentido metafísico, levando ao abandono do dispositivo perspectivo, da relação figura-fundo, dos limites miméticos da tela e da composição interna da superfície pictórica. O enigma da pintura está na sua força de evidência, que se impõe independentemente de um projeto prévio.

Numa tela coberta por pigmento, Newman estende uma fita adesiva, espalhando sobre ela cor mais clara. A colocação da fita, essa abrupta interrupção do processo de pintar, altera as condições da percepção. A linha, intervindo no campo pictórico, coloca o espectador dentro dele. Mas num espaço que excede o campo visual. Um espaço de que não podemos dar conta. Diante da relação assimétrica provocada por diversos campos de cor, impedindo a definição de um centro, impõe-se a evidência luminosa da área colorida. O campo de cor central, ladeado por duas áreas assimétricas, coloca em causa nossa percepção dos limites do quadro. A assimetria impede a definição tanto do centro como das bordas. Somos obrigados a abrir mão de determinar o lugar preciso: vemos apenas que a cor está ali.

Nas telas de Giannotti, o desequilíbrio espacial, perceptivo, é acentuado pelas torções do ponto de vista, os enquadramentos de canto, demandando um olhar enviesado que desestabiliza ainda mais a percepção. A tensão, na verdade, se dá em dois planos: na variação cromática, nuances que criam espacialidades diversas, e também na alteração das escalas. O observador percorre um espaço mutante, de diversos escalonamentos, configurações arquitetônicas que se armam e desarmam continuamente. Um espaço contemporâneo: fluido, do movimento.

Essa perturbadora espacialidade cromática vem sendo construída por Giannotti ao longo de diversas séries de pinturas que trataram de fachadas, portas e janelas. Ou que retrataram paisagens urbanas enquadradas por maciços elementos arquitetônicos e infraestruturas, como torres e tubulações industriais. Em todas já estão presentes os princípios e enfoques consolidados aqui: a cor como elemento estruturador, o ponto de vista angulado em vez da visão frontal e a contínua variação de escalas.

Temos aqui uma disposição que altera drasticamente as condições da experiência e da percepção. O campo denso entre aquele que vê e a coisa vista é constitutivo de sua visibilidade. O tecido do mundo das coisas é cerrado como uma vegetação espessa. A reversibilidade das dimensões torna as coisas profundas. Enlace de cor, volume, rugosidade ou lisura, dureza ou moleza. Laço que nos ata às coisas: a visão que se faz do meio, não de fora delas. então não é ver a partir de um ponto de vista, mas de todos. Uma casa pode ser vista determinado ângulo, do outro lado do rio ou de um avião. Mas ela é a síntese de todas as perspectivas possíveis. É preciso entender como a visão pode se fazer a partir de um ponto sem ser aprisionada pela perspectiva.

Olhar um objeto é mergulhar nele, Os objetos circundantes tornam-se horizonte, a visão é um ato de dois lados. Ou seja: ver um objeto é ir habitá-lo e dali observar todas as coisas. A visão é localizada, uma relação entre objetos situados no mundo. Esse campo é o lugar em que reflexão e intuição ainda não se distinguem, oferecendo-nos juntos o vidente e aquilo que se vê. O olhar apalpa as coisas: estamos no meio do mundo. As coisas não são achatadas, de duas dimensões, mas seres dotados de profundidade, só acessíveis àquele que com elas coexiste num mesmo espaço.

Uma visibilidade resultante da reciprocidade do vidente e do visível. Renúncia do pensamento por planos e perspectivas em favor de uma sobreposição de círculos concêntricos, ligeiramente descentrados, como as séries de imagens encadeadas formadas por dois espelhos dispostos face a face. Esse entrelaçamento é que constitui o campo. Ao olhar uma paisagem e falar com alguém, o que vejo passa por ele. O verde da planície sob meus olhos invade sua visão, sem abandonar a minha. Uma visibilidade anônima nos habita, devido a esse campo de relações massivas, esse ser Inter corporal.

Deleuze definiu assim essa condição: estar no meio, como o mato que cresce entre as pedras. Mover-se entre as coisas e instaurar uma lógica do e. Conexão entre um ponto qualquer e outro ponto qualquer. Sem começo nem fim, mas entre. Não se trata de uma simples relação entre duas coisas, mas do lugar onde elas ganham velocidade: o entrelugar. Seu tecido é a conjunção e... e... e. Algo que acontece entre os elementos, mas que não se reduz aos seus termos. Diferentemente de uma lógica binária, é uma justaposição ilimitada de conjuntos.

Um dos artistas seminais para a construção do espaço contemporâneo, o escultor Richard Serra, relata em diferentes passagens como foi influenciado pela pintura. Uma das suas experiências fundantes foi proporcionada por As meninas, de Velázquez. Especificamente, o modo como o quadro opera a construção do espaço em relação à posição do casal real, visto refletido no espelho. Assumindo-se que eles sejam o tema do quadro, só podem estar situados, por projeção, no espaço presente, ou seja, no espaço em que o observador está.

Na verdade, diz Serra, o observador passa a estar implicado na cena do quadro e Velázquez está olhando para ele. o quadro provoca um curto-circuito no espaço, impossível de ser compreendido a menos que se tome a tela como um corte espacial, passando a funcionar como uma articulação entre o espaço circundante, em frente, e o pictórico, atrás. Esse conceito de espaço implica um modo de pensar que questiona as convenções de sujeito e objeto da visão. O quadro nos força a, conscientemente, participar do seu jogo de espelhos ao incluir a nós, os observadores, no seu espaço.

A pintura tem esse ethos de criar lugar. Veja-se a série de quadros que Rothko preparou para o Seagram's Building, de Nova York, finalmente instalada em Houston. Para ele, tratava-se de saber como naquele universo caótico uma inscrição poderia fazer-se ouvir. A possibilidade de introduzir um espaço silencioso propício à reflexão.

Há uma manifesta vontade de lugar nessas telas, cujas aberturas verticais e horizontais nos fazem indagar sobre o sentido de janelas e portas e sobre as questões do olhar e ser olhado. Rothko usa quadros para ir além da pintura, para produzir um lugar. Massas coloridas com contornos indistintos, irredutíveis ao suporte. Uma pintura que implica escala, proporções. O movimento não se dá no interior dos quadros, entre os retângulos de cor, tamanho e peso distintos: a interação se faz entre as várias telas monocromáticas. Um quadro em relação com outro quadro, modo de colocar a questão da tensão entre espaço arquitetônico e presença humana.

A mesma vontade de entrar na pintura, de estar dentro dela, manifestada por Matisse, que fez os murais e vitrais de uma capela em Vence, França. Esperar que a pintura nos prenda em sua armadilha, como a armada por Monet em suas Ninféias. Fazer com que ali algo tenha lugar. Essa concepção do advento do lugar, também central na obra de Newman, atravessa toda a arte contemporânea.

Mas não se deve tomar esse impulso, próprio da arte, como uma simples adequação às características naturais ou históricas de um sítio. A arte não vem ressaltar aspectos já inscritos no local. Neste caso, a obra se reduziria à decoração. A arte revela a estrutura, o conteúdo e o caráter do lugar – ao redefini-lo nos seus próprios termos. O sítio não é representado, é reinventado.

Giannotti carrega essa mesma vontade de lugar. Trabalhando, porém, não em espaços protegidos, mas justamente ali onde há mais resistência, em locais inadequados para exposições, edificações públicas e ruínas industriais, onde a interferência arquitetônica e o ruído urbano se fazem mais estridentes. O arrojo da empreitada embute, no caso, uma absoluta confiança na força da pintura. A mesma que Giacometti manifestou com relação a suas esculturas. Aposta porque, para Marco Giannotti, a pintura vai muito além da tela. 'Essas intensidades cromáticas permeiam todos os espaços. O conteúdo está na experiência do sujeito, não mais no quadro. A pintura - uma exposição – constrói o lugar. Um espaço expositivo, rígido e fechado, torna-se outro: abrem-se portas, criam-se passagens. A pintura se realiza em tensão com seus locais de exibição. Ela se apropria de seus elementos, introduz fissuras, cria janelas: subverte o espaço. A pintura é fabricação do mundo,

Nelson Brissac Peixoto, 2007

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