Arte/Cidade - Trindade (2002)

Reportagem: O Estado de São Paulo - Fevereiro 2002 - Fernando Oliva
GIANNOTTI LEVA ARTE PRA DENTRO DA IGREJA
Artista expõe 'Trindade no Santuário São José do Belém, para o ‘Artecidadezonaleste'
Em uma megaexposição dominada por intervenções urbanas radicais, painéis luminosos que rasgam paredes, vagões de trem que desafiam a gravidade, escavações e bate-estacas, aço e concreto, a silenciosa instalação do artista plástico Marco Giannotti é uma espécie de contraponto silencioso a tudo isso. Mais: um ato de coragem e manifesto de crença no poder da pintura.
Ele vai participar do Artecidadezonaleste, que será inaugurado na semana que vem, dia 2, e é um evento que vai espalhar obras de 14 artistas do Brasil e do mundo pelos bairros do Brás, Belém, Pari e Mooca, além de 11 artistas que ocupam os cinco andares da Torre Leste do Sesc Belenzinho.
O trabalho de Giannotti, batizado Trindade, ficará pronto no dia 15. É simples: ele instalou três quadros de formato triangular no Santuário São José do Belém, cada um de uma cor (vermelho, azul e verde), suspensos um sobre o órgão, na parte posterior, e dois no alto das colunas sobre o altar-mor, um de cada lado. Hoje, às 11 horas, ele vai conduzir uma visita-guiada à igreja, que fica no Largo São José do Belém.
O pintor parte do princípio de > que, se o homem contemporâneo perdeu seus referenciais, é preciso reativar a experiência primordial – que é religiosa e artística – de vivenciar um espaço de maneira plena, em busca de uma integração total, a comunhão do sujeito com seu entorno.
Uma igreja seria esse lugar ideal: um dos poucos espaços contemporâneos onde o homem ainda entraria com a esperança de que uma imagem possa revelar algo de santo. “Na Igreja Apostólica Romana, esta expectativa se realiza na contemplação da imagem de Cristo, da Virgem Maria e dos santos. A cruz é o único elemento simbólico de natureza mais abstrata”, lembra o artista. “Entretanto, há outra forma de representação da Santíssima Trindade, de natureza mais abstrata, pela simples utilização de uma forma geométrica: o triângulo."
Fiéis – O interior de uma igreja pode ser visto como um espaço privilegiado para a obra de qualquer artista plástico. Os fiéis, transformados imediatamente em espectadores, vão até lá com os sentidos disponíveis à experiência humana da contemplação do espaço. “As pessoas vão lá para sentar, olhar e refletir, atitudes que não vemos mais nos museus”, compara Giannotti.
No credo de Giannotti, também o triângulo imaginário formado pelas três telas vai reconfigurar o espaço arquitetônico do santuário, pela força cromática da pintura. As cores escolhidas para cada um dos grandes triângulos (2,5 metros de base por 2,15 de altura) remetem à iconografia cristã: o vermelho-sangue está ligado à Paixão de Cristo, enquanto o azul-da-Prússia representa o manto de Nossa Senhora. Já o verde assume o lugar da própria ressurreição, o Espírito Santo. “A cor, por sua dimensão simbólica, surge como uma revelação. E uma referência a algo que não existe, como na própria experiência do sagrado", compara Giannotti.
Em conjunto, pairando sobre nossas cabeças, os três quadros podem ser vistos como uma metáfora da Santíssima Trindade (Pai-Filho-Espírito Santo), o conceito de que um Deus existe igualmente em três pessoas como uma substância-daí o título da instalação. “As três pinturas não funcionam apenas esteticamente. Elas pretendem falar de instâncias além delas, na tentativa utópica de resolver a dicotomia ancestral entre arte e vida. Neste caso, como as pinturas brigam um pouco com o espaço, a arte chega à vida com um certo desconforto."
Se a maioria dos artistas do Artecidadezonaleste, como José Resende, Carlos Vergara e o grupo Casa Blindada, optou por instalar seus trabalhos em meio ao caos paulistano, Giannotti preferiu um espaço menos sujeito às intempéries da metrópole.
Ruídos – Questionado se não era essa uma opção mais confortável, menos arriscada, Giannotti afirma que a ousadia de sua proposta reside no fato de que ela contesta a relação do ser humano com o sagrado. “A pergunta é: a intervenção da obra na igreja terá condições de libertar as pessoas para um entendimento mais pleno ou ela vai apenas incomodá-las, já que não estão acostumadas a ruídos neste sistema imaculado? Quero criar um curto-circuito."