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Contraluz (2009)

Um olhar lento, outro fluido

O que vemos, de início, mais parece um negativo fotográfico: a imagem ainda não foi revelada. Por isto mesmo, somos levados a nos aproximar da tela, examiná-la, interrogá-la, na expectativa talvez de que nesse meio tempo a imagem se mostre por completo. Mas a manobra será recorrente, interminável, pois a ação estética da pintura de Marco Giannotti consiste justamente em sustentar um poder de atração indefinido, a reclamar uma percepção que não cesse de corrigir e refazer o seu percurso. Assim como as múltiplas investidas da têmpera acrílica são voláteis, nem chegam a formar camadas, não agem enfim à maneira das velaturas do óleo tradicional – estranhamente, elas ficam na tela mas não sob o regime da permanência – também a nossa atenção demorada não ganha consistência com o tempo. Ela é sempre chamada, de novo, pela primeira vez. Essa pintura que não entrega a imagem que, de saída, promete, tampouco desvela a interioridade sedutora que deixa entrever.

A essa altura, pode-se muito bem argumentar, nenhuma química é explosiva. Ainda assim, uma linguagem de pintura contemporânea que se move – sincera, consciente, quase compulsivamente – entre dois polos tão antagônicos quanto Mark Rothko e Andy Warhol, pelo menos declara com franqueza sua origem problemática, assume desde logo o dilema de seu vir a ser. E, no entanto, do ponto de vista de um pintor culto, vocacional, nada mais lógico. Como escapar a Rothko, ao fascínio irresistível, que se quer perene, da mais intransigente entre todas as últimas das altas pinturas da tradição ocidental? E como permanecer imune a Andy Warhol, o soberano falso dem iurgo das aparências, e isto até os nossos dias, depois de meio século? Seria um pouco como ignorar, à sua época, a tensão entre Platão e Protágoras.


É verdade que a releitura de Marco Giannotti já começa por se especificar, passa ao largo das ideologias de produção dos dois artistas e de suas conflitantes recepções críticas, concentra-se inteira no problema da cor. E mesmo aí, opera um recorte: trata-se muito mais do tardio e sombrio Rothko, muito mais do Warhol das Shadows do que de qualquer outro. O que, de pronto, remete tudo, ou quase tudo, à prática material da pintura.

Traduzindo em termos críticos, discursivos, o que certamente ocorre no plano intuitivo, no próprio imaginário do artista, a questão da cor redefine e singulariza o conflito. Depois de Warhol, será viável ou factível a busca da cor intrínseca, a cor por ela mesma, com seu impacto estético autônomo? A iluminação extrínseca, mundana, de Warhol – sábia paródia do teatro da mídia – deteria semelhante alcance, de golpe resumiria dois séculos de livre e exaltada aventura cromática moderna? A resposta do pintor vem e só pode vir pelo trabalho reiterado de investigação da cor, pela interrogação sobre as suas atuais condições de exercício, a resposta virá em suma pelo processo de repetição da pergunta.


E a tarefa não é, em definitivo, a simples conciliação entre opostos e contrários. O desafio dessa pintura é mostrar-se à altura de suas intuiçòes díspares, tensionar-se, flexionar-se, tornar-se contemporânea de si mesma. Por exemplo, na questão do tempo. Visivelmente, dentro da mesma série, os quadros de Marco Giannotti tendem a se particularizar, cada um deles, por assim dizer, subjetiva-se. Daí o tempo estético que exigem, algo lento, meditativo, que jamais termina porém no puro êxtase de Rothko porque trazem sempre de volta o seu problema de início. Em todo caso, a eles tampouco se aplica a suspensão cética, a anônima ironia repetitiva, que distingue as séries de Warhol. Todo quadro encerra aqui o seu destino, embora já não o possa fazê-lo sob o modelo da unidade íntegra.


Ou ainda, o crucial problema da luz. Das telas de Giannotti parece emanar uma luz substantiva, que elas quase destilam, ao mesmo tempo em que exibem uma fosforecência suspeita, como se uma iluminação artificial viesse, de fora, a atingí-las. As cores, às vezes graves, profundas, remanescentes do último Rothko, resultam um tanto enganosas, a um passo da paródia, descrentes em epifanias. Não tão rasas e rápidas, é certo, quanto as cores estrategicamente frívolas das Shadows – cores que, quanto mais contemplamos, querendo decifrá-las, menos sentimos. Mas, à la Warhol, os quadros de Giannotti guardam a memória de imagens difusas, meio fora de foco, como se despedissem da aura extinta.


E, de fato, nessas telas se imprimem e reimprimem, deixam marcas visíveis, as grades de ferro que o artista recolhe ao acaso numa cidade (S. Paulo) onde grades têm uma presença ostensiva. Há, sim, uma ponta de ironia nessa alusão a um significante conspícuo no jargão da História da Arte Moderna: a legendária grade (grid) cubista. Fiquemos por aqui, contudo, pois a ironia é uma espécie de estranha-íntima ao espírito do trabalho. De qualquer modo, um elemento urbano comum, extra-estúdio, ingressa na química da pintura e indica, no mínimo, certo desconforto com sua condição reclusa. As imagens dispersas dessas grades, em superposicões que se confundem e virtualmente se auto-anulam, funcionam assim como as estruturas fracas do trabalho. Em tom coloquial, exprimem uma profissão de fé do artista acerca da pintura contemporânea: nem janela a propiciar uma vista, nem uma autodemonstração conceitual, distanciada, que logo se esteriliza.


Resta à tela reinventar-se, redescobrir-se, agir com eficácia em meio ao All-Over inexorável, manter-se em aberto, intrigante mas esquiva. E é sintomático, nesse sentido, o retorno do óleo, séria contrapartida à ligeira têmpera acrílica. Até pela demora da secagem, o óleo introduz um segundo momento, denso e dubitativo, que se contrapõe às ações volúveis do acrílico: o quadro volta-se sobre si mesmo, mistura tempos díspares, e com isso nos retém, olhando, desconfiando, tornando a olhar.

Ronaldo Brito

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